A sexta professora agraciada com o título de Professora Emérita da UFPA, Zélia Amador de Deus, é uma das maiores ativistas e intelectuais negras do Brasil. Sua trajetória de vida pessoal, militante e acadêmica, a tornou um dos firmes alicerces sobre os quais a UFPA está assentada. Como ressaltou o jurista e professor da Faculdade de Direito Antônio Maués, “esses alicerces são as pessoas que dedicam a sua vida à Instituição, educando, aprendendo e ultrapassando limites. São pessoas que definem o caráter de uma universidade, criam sua identidade e apontam seu caminho futuro”.
O título de Professora Emérita da UFPA foi outorgado pelo Conselho Superior de Ensino e Pesquisa, em sessão realizada em novembro de 2019, e as palavras do professor Maués sintetizaram o significado de uma trajetória que, até hoje, imprime marcas indeléveis na construção da universidade como um espaço democrático, inclusivo, plural e antirracista. Zélia Amador de Deus é mestra em Literatura e doutora em Ciências Sociais, com estudos relacionados a questões raciais.

Na UFPA, por meio de eleição, Zélia exerceu os cargos de vice-reitora (1993-1997) e diretora do Centro de Letras e Artes (1989 a 1993). Atuou também como coordenadora do Núcleo de Arte, hoje Instituto de Ciências da Arte (1997 a 2001), e, atualmente, é superintendente da Superintendência de Políticas Afirmativas e Diversidade (Diverse), sendo, reconhecidamente, uma das principais protagonistas da luta pela implantação da política de ações afirmativas na UFPA, que estabeleceram um sistema de reserva de vagas nos processos seletivos para pretos, pardos e indígenas.
A proposta de outorga do título partiu do então reitor Emmanuel Zagury Tourinho. Na ocasião, ele ressaltou que a UFPA é uma instituição melhor com o trabalho desenvolvido pela professora Zélia, tanto academicamente quanto em sua interação com a sociedade. “Muitos de nossos avanços na integração de ensino, pesquisa e extensão nas áreas de Artes e Humanidades realizaram-se sob a sua liderança”. Também destacou que as iniciativas da professora em defesa dos direitos de negros, mulheres, indígenas e quilombolas, assim como o persistente combate à injustiça, à violência e ao preconceito foram fundamentais para tornar a UFPA uma instituição mais inclusiva e mais comprometida com os direitos de todas as pessoas.
Vida e arte – A história de Zélia traz indicações de como seu caráter foi sendo moldado nos embates e nas experiências da vida. Filha de mãe solteira, de 15 anos de idade, Zélia nasceu em uma fazenda de gado de Soure, na Ilha do Marajó, em 1951. Para fugir ao destino imposto a muitas crianças negras e pobres nascidas no Brasil, a família veio para Belém, instalando-se em um dos bairros mais carentes da periferia, a Sacramenta. A transferência, porém, não pôs fim aos traços do regime de semiescravidão que acompanharam a família. A mãe trabalhava como empregada doméstica; o avô, vaqueiro no Marajó, tornou-se operário da construção civil; e a avó aumentava a pouca renda da família lavando roupa para fora. A menina Zélia estudou em escolas públicas e sofreu racismo por causa da cor da pele e do cabelo crespo. Uma vez foi impedida de participar de uma dança na escola porque a professora lhe disse que só dançariam “as meninas mais bonitinhas e ajeitadinhas”. Nestes momentos, Zélia encontrou na avó o conforto de que precisava para resistir. Ela lhe dizia para não baixar a cabeça e impor sua presença em qualquer lugar que estivesse.
E foi nesse cenário que, desde pequena, Zélia desenvolveu uma aptidão para o teatro. Ela não só participava de peças infantis apresentadas na paróquia do bairro, como também escrevia e montava seus próprios textos. Começava ali uma experiência com forte repercussão na sua vida. No mesmo ano em foi aprovada no vestibular para o curso de Licenciatura em Língua Portuguesa, Zélia também foi selecionada para o curso de Formação de Atores, da Escola de Teatro da UFPA. Por sua atuação na peça O Coronel de Macambira, um auto inspirado no bumba-meu-boi, de Joaquim Cardozo, foi premiada como melhor atriz do Festival Nacional de Teatro de Estudantes, em Goiânia. Nos Anos de Chumbo, da Ditadura Militar, Zélia e um grupo de atores recém-formados na Escola de Teatro fundaram o Cena Aberta, que se tornaria um dos principais grupos de teatro de Belém dos anos 1970-1980, com peças engajadas que procuravam refletir sobre a condição de exploração do homem, por isso a censura da Ditadura estava sempre vigilante.

Zélia gostava de trabalhar como atriz, mas foi como diretora de Teatro que desenvolveu a capacidade de ouvir o outro. “O teatro me ajudou muito a ser uma pessoa que consegue dialogar, entender a razão do outro”, afirma. Como diretora, ela concebia os personagens, mas os atores os desenvolviam também com base nos seus próprios pontos de vista. “Eram contribuições, muitas vezes, enriquecedoras. Digo que mudei muito como pessoa no sentido de somar, de ouvir o outro, acatar as contribuições. Isso foi importante não só para a minha carreira profissional, mas também para toda a minha vida”, completa.
Este sentido do diálogo, de ouvir o outro, de entender a dor dos injustiçados, Zélia levou para a academia, para a sala de aula e para militância como ativista do Movimento Negro. Em 1980, ela se tornou uma das fundadoras do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), tendo atuado em defesa do reconhecimento e da titulação das terras das comunidades quilombolas do Pará. O trabalho a levou a alçar voos ainda mais altos. De 1996 a 2001, Zélia foi membro do Grupo Interministerial de Valorização da População Negra e membro da Comissão Técnica Nacional de Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-Brasileiros. Nos anos de 2001 a 2003, ela foi coordenadora do Programa de Ação Afirmativa do Ministério do Desenvolvimento Agrário e, também em 2001, foi uma das representantes do Brasil na Conferência de Durban contra o Racismo e a Discriminação Racial, da Organização das Nações Unidas (ONU).


Meninas e Mulheres na Ciência – Esta é a sexta matéria da série que homenageia as professoras eméritas da UFPA, em alusão ao Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, comemorado em 11 de fevereiro. A data foi criada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e pela Organização das Nações Unidas (ONU) como forma de reconhecer o papel fundamental exercido pelas mulheres e pelas meninas para o desenvolvimento da ciência no mundo.
A data é um marco para a promoção do acesso à ciência de maneira igualitária, buscando, dessa forma, incentivar que mais mulheres e meninas avancem em suas carreiras científicas contrariando qualquer estereótipo de gênero. Além de ser uma prioridade global da agenda da Unesco, esta ampliação da participação das mulheres na ciência é também um fator imprescindível para que novas perspectivas sejam analisadas e a criatividade se desenvolva ainda mais nas diferentes áreas de estudo.
Texto retificado às 14h53 de 07/03/2025 para substituir a expressão “bulling” por “racismo”.