Uma acadêmica militante voltada à formação e orientação de novos profissionais nas áreas de Antropologia, Direito e Saúde, sob uma perspectiva interdisciplinar. Uma pesquisadora comprometida politicamente com a inclusão de pessoas etnicamente diferenciadas. Em poucas linhas, assim se pode sintetizar o perfil acadêmico e profissional da oitava mulher a receber o título de Professora Emérita da UFPA, a historiadora e antropóloga Jane Felipe Beltrão.
Exemplos não faltam do engajamento desta professora, desde o tempo de bolsista do NAEA, quando trabalhou na formação de líderes comunitários na Comissão de Bairros de Belém – CBB, ao lado da mestra e amiga Rosa Acevedo, ou, antes, quando, à frente de uma comissão encarregada de atuar na remoção dos moradores da baixada do Barreiro para Val-de-Cans, conseguiu convencê-los a não se transferirem, tomada de posição que lhe rendeu a demissão do trabalho no extinto Movimento Brasileiro de Alfabetização – Mobral, ou, ainda, quando, trabalhando na hoje Fundação Nacional dos Povos Indígenas – Funai, em Brasília, participou, com outros colegas, do envio ao ministro do Interior, Mário Andreazza, de denúncia de arrendamento e venda irregular de terras indígenas.
Era tempo da ditadura. Em vez de apuração da denúncia, os denunciantes, quarenta funcionários, entre indigenistas e antropólogos, foram demitidos a bem do serviço público. Alguns fizeram acordo e voltaram à Funai. Jane se negou a fazer acordo. “Passei 17 anos para me livrar daquela justa causa”, recorda. Em outro momento, durante pesquisa para o mestrado realizada nas usinas de beneficiamento de castanha em Belém, ela se condoeu da situação insalubre vivenciada pelas mulheres operárias. Exortou-as a denunciar as péssimas condições, acompanhando-as à Delegacia Regional do Trabalho.
No meio acadêmico, Jane teve papel de destaque na formulação de políticas institucionais, em especial as políticas de ação afirmativas de inclusão de povos tradicionais e populações de baixa renda na educação superior, que tornou a UFPA pioneira no estabelecimento de um sistema de cotas e vagas reservadas na graduação e na pós-graduação. Antes mesmo da criação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, do qual foi uma das fundadoras, Jane já se dedicava à formação de indígenas, quilombolas e povos tradicionais na UFPA. Seu currículo registra a formação de 21 doutores, dos quais 19 estão atuando como docentes em Instituições de Ensino Superior. Como Uwira Xakriabá, da etnia xakriabá, primeiro professor indígena admitido na UFPA por meio de processo seletivo destinado a professores indígenas e um dos fundadores da Faculdade de Etnodiversidade da Universidade.


Percurso acadêmico – Jane Beltrão estudou o ensino clássico no Colégio Estadual Paes de Carvalho. Em 1970, foi aprovada no vestibular para a Faculdade de História da UFPA. O curso não havia atingido o patamar que alcançaria depois que um grupo de professores voltou da pós-graduação, mas Jane guarda, com carinho, a memória de Paula Ramos Chaves, professora de História da América, que dá nome, hoje, ao Laboratório de História. “Ela chegava com um papelzinho com o esquema da aula, falava tranquilo, foi a melhor professora que tive no curso”, lembra.
Logo no primeiro ano do curso, aos 17 anos, Jane iniciou na carreira docente, como professora do ensino médio nos Colégios Abrão Levy, Kennedy, Moderno, Ruy Barbosa e em cursos de vestibular. Passou dez anos trabalhando no nível médio até ser aprovada no concurso para professora da UFPA, na qual está há 45 anos, o que lhe confere 55 anos de atividade no magistério.
É grata aos professores Jean Hébèth e Rosa Acevedo, do NAEA, que lhe ensinaram metodologia e pesquisa em arquivos, num tempo em que os códices da Biblioteca e do Arquivo Público tinham que ser colocados para secar próximos a janelas por causa da umidade e das infiltrações do velho prédio. O primeiro contato com a Antropologia aconteceu na Faculdade de História da UFPA, que pertencia ao Departamento de História e Antropologia. As aulas de Etnologia Indígena eram ministradas pelo professor Napoleão Figueiredo.
“Ele ensina bem, mas as aulas dele eram sempre expositivas. Usava umas apostilas, que, hoje, estão no Centro de Memória da UFPA, para onde mandei quando cuidei do acervo deixado pelo mestre. Os alunos se entusiasmavam porque o professor Napoleão era um bom narrador. Contava as histórias das viagens dele pelas aldeias. Isso tudo era bem interessante. Aí, fui me apaixonando pela Antropologia”, recorda.
Durante a especialização na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), esteve com os xokleng e kaingang. Concluída aquela etapa, ela foi aprovada, em 1976, no Mestrado em Antropologia da Universidade de Brasília (UnB). Orientada pelo antropólogo Julio Cezar Melatti, a dissertação se chamou Mulheres da castanha: um estudo sobre o trabalho e o corpo. Em 1995, Jane deu início ao doutorado na Universidade de Campinas, orientada pelo historiador Sidney Chalhoub. A tese Cólera, o flagelo da Belém do Grão-Pará foi defendida em 1999. Durante o doutorado, solicitada a produzir um laudo antropológico, Jane teve oportunidade de trabalhar com povos indígenas como parkatêjê e aikewara. “Quase morri de chorar quando cheguei nas aldeias porque era o que queria fazer. Foi meu primeiro trabalho com eles. Estava com 45 anos”.

Desde 2017, Jane Beltrão é professora titular da UFPA, com atuação nos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e em Direito. Atua também como docente colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Além das pesquisas com povos indígenas e populações tradicionais, ela trabalha com patrimônio histórico e antropológico com ênfase em coleções etnográficas e desenvolve ações como perita judicial, produzindo laudos e vistorias antropológicas. Jane explica que a etnologia que faz se difere das demais porque ela não vai para uma aldeia com um projeto fechado, seu, ela atua quando solicitada.
Como exemplo, cita o convite do Conselho Indigenista Missionário, de Santarém, para escrever a história dos povos indígenas do Tapajós-Arapiuns. “Disse ao Cimi que não escreveria a história porque aqueles indígenas tinham capacidade de escrevê-la. No máximo, poderia fazer uma oficina, registrar e organizar o livro”. Assim foi feito. O livro publicado trouxe a história dos indígenas contada por eles mesmos.
Meninas e Mulheres na Ciência – A série “Meninas e Mulheres na Ciência 2025”, iniciada no dia 11 de fevereiro, homenageia as professoras eméritas da UFPA, em alusão à data criada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e pela Organização das Nações Unidas (ONU) como forma de reconhecer o papel fundamental exercido pelas mulheres e pelas meninas para o desenvolvimento da ciência no mundo.
A data se configura como um marco para a promoção do acesso à ciência de maneira igualitária, buscando, dessa forma, incentivar que mais mulheres e meninas avancem em suas carreiras científicas contrariando qualquer estereótipo de gênero. Além de ser uma prioridade global da agenda da Unesco, essa ampliação da participação das mulheres na ciência é também um fator imprescindível para que novas perspectivas sejam analisadas e a criatividade se desenvolva ainda mais nas diferentes áreas de estudo.