Descoberta do Mycobacterium lepromatosis revisa história da hanseníase nas Américas

Durante cinco séculos, acreditou-se que a hanseníase, popularmente conhecida por lepra, uma doença que afeta principalmente a pele, os nervos periféricos, os olhos e as vias aéreas superiores, causada pela bactéria Mycobacterium leprae, havia sido introduzida nas Américas pelos colonizadores europeus, pelos africanos tornados escravos e pelos indianos levados para as Guianas também como escravos. Um estudo publicado no volume 388, em maio passado, pela revista Science, no entanto, mostra que a história da hanseníase é bem diferente do que se acreditava: antes mesmo da chegada daquelas correntes migratórias, a hanseníase já estava presente nas Américas. A constatação deve-se à descoberta da presença de outra bactéria, o Mycobacterium lepromatosis, na ossada de indígenas pré-colombianos no Canadá e na Argentina. 

A descoberta foi realizada por pesquisadores da Universidade do Colorado e por cientistas de outras instituições com quem a universidade norte-americana tem parceria, como o Laboratório de Dermatologia e Imunologia da UFPA, coordenado pelo médico Claudio Guedes Salgado, professor titular do Instituto de Ciências Biológicas da UFPA, que é um dos autores do artigo. 

O grupo de cientistas já sabia, desde 2008, da existência do Mycobacterium lepromatosis, mas não havia vestígio da sua presença até então. A descoberta recente em indígenas do Canadá e da Argentina é o diferencial que possibilitou afirmar a existência da hanseníase antes mesmo da chegada dos colonizadores e povos escravizados nas Américas. Para o cientista Claudio Salgado, é muito provável que, para além do Canadá e da Argentina, o resto do continente também tenha registro da hanseníase causada pelo Mycobacterium lepromatosis, embora nas amostras estudadas no Laboratório de Dermatologia e Imunologia da UFPA ainda não tenha sido detectada a presença desta bactéria. 

“O que se sabia, até então, é que a hanseníase era causada unicamente pela bactéria Mycobacterium leprae. A descoberta mudou a história da hanseníase. Interessa-nos saber, por exemplo, como conseguiram controlar o Mycobacterium leptomatosis? As pessoas foram isoladas? Não sabemos nada sobre os procedimentos adotados. O certo é que a bactéria desapareceu, sendo, então, substituída pelo Mycobacterium leprae”. Segundo Salgado, “é como estivéssemos olhando um telescópio focado para trás da história. Isto é uma coisa fascinante do ponto de vista da ciência, algo como olhar as estrelas para entender de onde viemos”. 

A descoberta insere o tratamento da hanseníase em uma nova dimensão. “Estamos interessados em entender melhor como essa descoberta pode ajudar a tratar melhor os pacientes e as pessoas que poderão um dia ter a doença. Precisamos trazê-las para novos exames no laboratório para saber sobre a presença ou não dessa nova bactéria”, informa o pesquisador. O exame para detecção do tipo de bactéria não era realizado porque os cientistas de todas as partes do mundo entendiam que o Mycobacterium leprae era a única bactéria causadora da hanseníase, com uma variação genética muito pequena. “Hoje, dispomos de técnicas moleculares, que não são complexas, tipo PCR [Reação em Cadeia da Polimerase, uma técnica laboratorial usada para amplificar regiões específicas do DNA], empregadas no diagnóstico da doença e identificação do tipo de bactéria”.

Cultivo in vitro – Durante séculos, o mundo achava que só existia o Mycobacterium leprae como causador da hanseníase. Ela não teria mutações, ou seja, não teria gerado outras micobactérias. Uma das causas do pouco conhecimento sobre ela se deu pela dificuldade em cultivar o Mycobacterium lepra em laboratório. “Como a ciência não consegue cultivá-lo, estudou-se ele muito pouco”, ressalta o Dr. Claudio Salgado. 

O que os cientistas sabem da hanseníase vem da prática clínica e da imunologia, ciência que estuda o sistema imunológico, responsável pela defesa do organismo contra agentes estranhos, como vírus, bactérias e outros patógenos. Neste sentido, de acordo com o coordenador do Laboratório de Dermatologia e Imunologia da UFPA, a hanseníase tem uma variação muito interessante do ponto de vista clínico de um paciente para o outro – alguns conseguem controlar bem a doença, outros não – o que serviu como um modelo para a imunologia. 

“A gente estudou muito a imunologia desde a década de 1950, e a bactéria foi deixada de lado, porque não conseguíamos cultivá-la, diferentemente do que ocorre com o Mycobacterium tuberculosis, o bacilo de Koch, causador da tuberculose”. A causa da dificuldade em cultivar o Mycobacterium leprae ocorreu porque ele perdeu alguns componentes do seu maquinário genético. O laboratório da UFPA, porém, está desenvolvendo pesquisa genética com o cultivo in vitro. “Trata-se de outra linha de pesquisa nossa. A dificuldade se dá porque a Mycobacterium leprae é uma bactéria muito lenta, ou seja, mesmo que você coloque in vitro, ela demora muito tempo para se multiplicar. Segundo a literatura, leva entre 10 e 15 dias para se multiplicar. Veja, nós estamos falando de bactéria, um organismo com capacidade de se multiplicar muito rapidamente, por minutos, segundos, dependendo do tipo de bactéria”. 

Como se trata de uma bactéria lenta, ao penetrar no organismo humano pelo nariz (a única forma de transmissão é pelo ar), ela circula na corrente sanguínea, entra no nervo periférico e fica lá de maneira quase silenciosa, multiplicando-se. Uma vez que essa multiplicação é lenta, o organismo humano vai se adaptando, então, os sintomas demoram a aparecer. “Os sintomas demoram a aparecer, perde-se um pouco de força, há uma alteração de sensibilidade. A pessoa atingida pela hanseníase tende a associar esses sintomas a outras causas, por exemplo, à idade. Quando os sintomas se manifestam mais intensamente, o diagnóstico é mais fácil de ser feito, mas, então, já estamos diante de um problema maior”, explica Claudio Salgado.  

A hanseníase é uma doença que causa manchas, caroços ou inchaços na pele, além de perda de pelos, especialmente nas sobrancelhas. Em casos mais avançados, podem surgir feridas na pele, mutilações e lesões mais graves nos nervos, levando à fraqueza muscular e a deformidades. Anteriormente, o paciente era submetido a um tratamento impensável hoje, como a segregação, mesmo sem consentimento, em um leprosário, tal o que existiu na Colônia do Prata, em Marituba, onde está localizado o Laboratório e a Unidade de Referência Especializada (URE) Marcello Cândia. Claudio Salgado, porém, entende que o isolamento continua até hoje: “Atualmente, quando há o diagnóstico, as pessoas se afastam do convívio da pessoa doente, ela fica solitária, muitas vezes perde o emprego, são coisas que ocorrem com frequência, mas que não deveriam acontecer. Quando alguém é diagnosticado com a doença, as pessoas mais próximas precisam ser submetidas ao exame de contato para saber se também estão ou não doentes”. 

O médico da UFPA alerta, ainda, para a necessidade de o pessoal especializado em hanseníase ter expertise suficiente para identificar a doença em sua forma mais precoce, antes de chegar àquele quadro mais evidente de perda de movimento e de partes do corpo. “Precisamos identificar e tratar essas pessoas. A Biologia Molecular, uma área que envolve a genética e a bioquímica e auxilia a entender a vida em nível molecular, é a nossa grande aliada atualmente”, afirma. A equipe liderada pelo Dr. Claudio Salgado faz visita aos pacientes em suas residências, em que colhe material e os examina regularmente.

Laboratório de Dermatologia e Imunologia – O Laboratório de Dermatologia e Imunologia da UFPA, especializado em tratamento da hanseníase, foi fundado em 2001, dentro da Ex-Colônia do Prata, em Marituba, no estado do Pará, com a finalidade de dar suporte de pesquisa à Unidade de Referência em Dermatologia Sanitária “Dr. Marcello Cândia”, mantido pela Secretaria de Saúde do Estado, em parceria com a Sociedade Pobres Servos da Divina Providência, entidade católica proprietária do prédio. 

“Eu passava o dia inteiro lá, fazendo atendimento, inclusive almoçava com os padres da Sociedade. Um dia, eu falei que precisava fazer pesquisa e os irmãos disseram que havia uma casa ali perto, onde funcionou o antigo Marcello Cândia. Naquela época, eu havia submetido um projeto de pesquisa a um edital da Secretaria de Ciência e Tecnologia, do governo do estado. Então, perguntei ao diretor da Sociedade que, se meu projeto fosse aprovado, a Sociedade reformaria a casa. Ele respondeu que sim. E, de fato, ganhei o edital, eles cumpriram a promessa, a casa foi reformada e virou o laboratório no qual estamos há 24 anos”, conta o médico Claudio Guedes Salgado, que havia regressado do doutorado no Japão, em 1999, quando recebeu convite feito pelo então diretor do Marcello Cândia, Dr. Paulo Mendonça, para trabalhar no atendimento de pacientes com hanseníase naquela unidade.  

Já em 2002, após o médico ser aprovado em concurso para a UFPA, o dinheiro do projeto repassado pela Sectam foi empregado na montagem do Laboratório, no qual trabalhou nos cinco primeiros anos mediante convênio entre UFPA, UEPA, Sociedade e Sespa. Ao final do convênio, o trabalho não parou. Atualmente, a equipe de pesquisadores do laboratório é formada por Claudio Salgado; pelos biólogos e professores efetivos da UFPA Patrícia Fagundes da Costa e Moisés Silva; pelo fisioterapeuta Josafá Barreto, da UFPA-Campus Castanhal; pelo médico Pablo Pinto, do Instituto de Ciências Médicas; e pela professora substituta Raquel Bouth. Nestes 24 anos de existência, o Laboratório de Dermatologia e Imunologia da UFPA formou mais de 20 mestres e mais de 10 doutores. 

Atualmente, o professor Claudio Salgado faz parte do Comitê Ciências Biológicas II da Capes e foi recentemente eleito conselheiro da International Leprosy Association (ILA) para as Américas. Ele diz que o Laboratório de Dermatologia e Imunologia possui bons equipamentos e que tem, pela frente, um enorme campo aberto para pesquisas, sendo uma referência em pesquisas sobre hanseníase no Brasil. Os estudos que estão sendo realizados sobre o Mycobacterium leprae contam com as parcerias de outros importantes laboratórios, como o Instituto Pasteur e a Universidade do Colorado, no exterior, o Departamento de Dermatologia da USP Ribeirão Preto e o Instituto Lauro de Souza Lima, em São Paulo, além do Laboratório de Genética Humana e Médica, do Instituto de Ciências Biológicas da UFPA. 

TEXTO: Walter Pinto - Assessoria de Comunicação Institucional da UFPA

FOTOS: Arquivo pessoal

Relação com os ODS da ONU:

ODS 3 - Saúde e Bem-EstarODS 4 - Educação de QualidadeODS 17 - Parcerias e Meios de Implementação

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