O Centro de Eventos Benedito Nunes (CEBN/UFPA) foi palco de mais um encontro do Motirõ (mutirão), programa de letramento socioambiental e ecológico promovido pela Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa (Fadesp), em preparação para a trigésima edição da Conferência das Partes da ONU, a COP 30. A programação gratuita reuniu três convidados especiais: a pajé, ambientalista e escritora marajoara Zeneida Lima; o historiador Luiz Simas e o carnavalesco Milton Cunha, psicólogo de formação, cuja graduação foi concluída em 1982 na UFPA. Eles deram o tom à programação que trouxe aos participantes o tema “Cultura ancestral e popular: floresta em pé e a sobrevivência dos mitos”.
As boas-vindas ao público foram dadas pelo diretor executivo da Fadesp, Roberto Ferraz Barreto, que celebrou a realização da quarta edição do Motirõ, em um ano tão simbólico quanto 2025, quando, em poucas semanas, Belém e o Brasil sediarão a COP 30. “Mais do que nunca, é essencial que nós, amazônidas, por nascimento ou afeto, tenhamos voz para falar por nós, para nós e sobre nós”, lembrou.
Segundo ele, um dos principais objetivos do Motirõ é fazer com que a ciência se torne um tema cotidiano, acessível e conectado com a vida das pessoas. “Ciência que não atravessa o social e não toca as realidades humanas perde o sentido. Essa visão está no DNA do Motirõ, que nasce da cultura ancestral popular, da floresta em pé e da força dos mitos que nos mantêm vivos. Por isso somos profundamente gratos aos convidados que aceitaram o convite para compartilhar suas experiências neste espaço”, destacou.
De acordo com o reitor da Universidade Federal do Pará, Gilmar Pereira da Silva, a UFPA tem esse compromisso em ser uma universidade verdadeiramente acessível e inclusiva, dando importância à aproximação do meio acadêmico com as comunidades e as expressões culturais e populares. Segundo ele, a Instituição trabalha para equilibrar a produção científica de ponta, que vai da pesquisa com combustíveis à inovação tecnológica, com uma atuação enraizada nas comunidades quilombolas, indígenas e extrativistas. “Temos feito uma tarefa grandiosa para mostrar ao Brasil e ao mundo que, além de árvores, rios e peixes, aqui há gente. Gente quilombola, indígena, extrativista, empresários, trabalhadores e também a academia”, pontuou o reitor.
Cultura ancestral e popular – A apresentação inicial foi realizada por Zeneida Lima, que, aos 91 anos de idade, emocionou o público compartilhando sua história de vida e espiritualidade. Assentada como pajé aos 11 anos, ela relatou memórias da infância na casa da família no Marajó, marcada por dificuldades e a força de sua mãe, que “ia pescar e tirar açaí” para sustentar os filhos quando o pai estava ausente. “Enquanto eu estava debulhando açaí, eu senti essa brisa mais forte e, de repente, sentaram perto de mim três seres, todos de pele azul, um azul lindo”, relembrou.
“Eu fiquei assustada, recusei uma bebida que me ofereceram e, em seguida, tive a sensação de ser transportada para outra mata”, continuou, ao contar que ficou desaparecida na floresta, e sua mãe, sem encontrá-la no local, entrou em desespero. A experiência, envolta em mistério e conexão com o invisível, marcou o início de sua jornada como pajé, revelando a força das vivências espirituais ancestrais que resistem ao tempo e ao esquecimento.
Na sequência, a conversa com o público ficou por conta de Luiz Antonio Simas, historiador, professor, escritor e compositor, referência nacional nos estudos sobre cultura afro-brasileira, religiosidade e samba. Ele compartilhou uma reflexão potente sobre a importância dos saberes ancestrais e da oralidade como formas de conhecimento e construção de mundo. “Eu venho de uma família que tinha poucos livros, mas era muito musical. Quem primeiro me contou histórias foi o tambor, foi a folha, foi o terreiro”, disse, ao lembrar que suas primeiras narrativas não vieram dos livros, mas da natureza e dos rituais.
Inspirado pela fala de Dona Zeneida, ele conectou a vivência dela com um mito relacionado a um orixá curandeiro das florestas, um símbolo da força espiritual que atravessa os povos tradicionais. Para ele, essas experiências não se limitam à resistência, são expressões de reinvenção e criação diante da violência histórica do Estado brasileiro. “O Brasil, como projeto de Estado-nação, com raras exceções, foi projetado para excluir, concentrar riqueza, aniquilar saberes não eurocentrados”, afirmou. Nesse contexto, ele ressalta que as culturas florestais, praieiras e ancestrais, como a de Zeneida, não apenas resistem, mas também “re-resistem”. “Mais do que cultura de resistência, é cultura de re-resistência, de criação de sentido para o mundo”, defendeu.
Para fechar os diálogos, o carnavalesco, doutor em Letras e figura presente na mídia nacional, Milton Cunha compartilhou sua trajetória intelectual e afetiva com a cultura popular, destacando a importância de olhar para os saberes do povo com a mesma seriedade dedicada às tradições acadêmicas. “A cultura popular é uma resposta do povo ao abandono. O povo cria suas narrativas e suas efemérides sem pretensão, apenas como expressão do valor da vida”, afirmou. Ele relatou como, em seus estudos, utilizou a análise semiótica para interpretar os desfiles das escolas de samba e defendeu que a escola de samba não é apenas história, mas também uma narrativa estruturada, com poética e técnica.
Para ele, o Brasil profundo está nos territórios que criam arte com base no que possuem, como nas guitarradas, no funk, no trap, nas baterias e nos tambores que ecoam por todo o país. “O tambor nos costurou como povo brasileiro! Ele foi viajando pelas Terras Brasílis e foi tendo vários sotaques”, ressaltou. Milton defendeu, ainda, que é preciso uma aproximação da Universidade com essas expressões, reconhecendo a sofisticação estética e simbólica do que é produzido fora da lógica hegemônica, e celebrou a realização do evento: “Vim aqui para celebrar esse espírito indomável e encantado da nossa gente”, finalizou.
