O sociólogo guineense Miguel de Barros, pesquisador de temas como direitos humanos, soberania alimentar, meio ambiente e migração humana na África, esteve em Belém, onde participou de evento promovido pelo Instituto de Ciências Jurídicas (ICJ) da UFPA, que reuniu plateia de comunidades formadas por afrodescendentes de diferentes pontos do Pará.
Nesta entrevista ao Beira do Rio, ele fala sobre mudanças e desafios climáticos nos países africanos e aponta paralelos entre a Amazônia e a África. Ele também denuncia o não cumprimento dos compromissos assumidos nas últimas COPs pelos países ricos com as necessidades específicas do continente africano.
Diretor-Executivo da Organização Não Governamental Tiniguena, dedicada à preservação do meio ambiente na Guiné-Bissau, Miguel de Barros esteve em visita às reservas extrativistas na região do Tapajós, onde percebeu processos semelhantes aos verificados na África, nos quais, as populações que, efetivamente, garantem a salvaguarda da floresta e dos recursos naturais são as mais expostas às mudanças climáticas, à violação das regras ambientais e à ausência de garantias sociais e econômicas na execução das políticas públicas.
Sobre as mudanças climáticas na África
As mudanças climáticas estão impactando o continente africano de forma muito severa. Temos tido muita irregularidade em termos de chuva, aumento da erosão costeira, elevação do nível da água do mar, mas também muita seca, como durante cinco anos, no sul de Angola. Temos tido um regime de cheias, inundações e catástrofes naturais que estão acontecendo com maior regularidade, por exemplo, em Moçambique. Temos também muita dificuldade com o manejo do gado atendendo à combinação da seca e dos fenômenos migratórios forçados, fazendo com que as comunidades de pastoreio não tenham conseguido outros espaços com as mesmas características originais onde habitavam.
Temos ainda muita migração forçada, situações de tensão ou de disputas resultantes desse processo. Isso para um continente que não emite mais de 4% de carbono em nível global, mas tem sofrido as consequências por não ter sistemas de proteção e por não ter uma certa base que permita, sobretudo, prever esses fenômenos em nível global. Por exemplo, nós não temos no continente países preparados para o sistema de previsão e de gestão dos impactos das mudanças climáticas.
Mas o mais complicado desse processo é o impacto, que considero ter três fatores. Primeiro, o impacto das mudanças climáticas na agricultura. Há uma estimativa muito grande do aumento da situação de insegurança alimentar tradicional, de fome, que vai alastrar-se severamente a todo o continente. O segundo fator é uma das consequências dos efeitos do primeiro e tem a ver com a baixa produtividade e, ao mesmo tempo, com a baixa renda que esses países vão ter, sobretudo, na diminuição do PIB per capita. Isso tem um efeito enorme em termos, por exemplo, de perda de empregos e da obrigação à mobilidade forçada por parte tanto de agricultores, familiares como também dos jovens. Haverá uma concentração nas cidades, levando à perda de empregos e de sistemas produtivos no campo. O terceiro fator tem a ver com a questão do acesso à água. Nós vamos ter situações muito críticas, de falta de acesso à água potável de qualidade, que vai afetar muitas comunidades e provocar também doenças associadas ao uso e consumo dessa água inadequada.
A combinação desses três fatores levará a um empobrecimento das famílias em termos, sobretudo, de perda de capacidade econômica para enfrentar as situações da vida, levando a uma maior vulnerabilidade dos povos.
Desafios da questão climática
Comparativamente à taxa de mortalidade durante a pandemia de covid-19, as questões ambientais são muito mais desafiadoras. Observamos que, em nível global, dos dez países que mais sofrem impactos ambientais causados pela poluição do ar e da água, sete estão no continente africano. São eles, Chade, Níger, República Centro-Africana, Somália, Lesoto, Burkina Faso e África do Sul.
Dos 54 países da África, só dez têm capacidade para monitorar a poluição climática (África do Sul, Egito, Gana, Libéria, Maurícias, Marrocos, Nigéria, Tanzânia, Uganda e Quênia). Depreende-se daí que a regulação daquilo que são as relações socioeconômicas e políticas em nível global tem que permitir que a justiça econômica favoreça, sobretudo, o acesso aos serviços básicos e garanta os direitos das comunidades, de modo que permita também uma reformulação das lógicas de exploração dos recursos naturais, para que a justiça ambiental seja, efetivamente, um elemento da alteração de padrões de consumo não só no Norte, mas também possibilidade de isso acontecer no Sul Global.
Neste caso, o continente africano, em especial, poderia usufruir não só em termos de tecnologias e serviços, mas também da partilha das vantagens provenientes da exploração desses recursos, de modo que isso favoreça uma transição à civilização e, ao mesmo tempo, uma garantia do equilíbrio em termos de modos de vida para as próximas gerações. Daí que a questão climática será um grande desafio, porque temos que demonstrar como é que nós vamos assumir o compromisso de salvaguardar aquilo que hoje é o planeta Terra.
Paralelos entre Amazônia e África

Estive em visita a algumas reservas extrativistas amazônicas, como na região do Tapajós, que são utilizadas para a exploração da natureza. No rio Tapajós, encontramos uma zona muito rica de povos, de saberes, de culturas, de patrimônios naturais, de minérios e de uma infraestrutura natural em termos de floresta. Mas é onde observamos também enormes pressões do agronegócio, da agroindústria, das hidrelétricas e do desflorestamento.
Se olharmos, por exemplo, o mapa dessas regiões que têm a maior mancha de cobertura florestal e grande concentração de biodiversidade, observamos que são exatamente as zonas onde estão os povos tradicionais, os povos indígenas, os quilombolas e os povos de matriz africana. Mas são zonas nas quais existe também uma grande carência em termos de proteção social, de serviço social público. Ou seja, o detentor da salvaguarda do patrimônio não tem nenhum benefício que lhe permita uma mobilidade social ascendente e uma garantia também de acesso aos serviços econômicos. Encontramos o mesmo paralelismo na África. Lá, há também regiões onde estão grandes reservas de matérias-primas, de terras aráveis, de reservas de pesca, de reservas de capacidade de sequestração de carbono. Mas o que é dado à população detentora da salvaguarda daquele patrimônio é algo completamente injusto. O impacto da ação das indústrias em relação à contaminação das águas, por exemplo, é algo terrível. Crianças e mulheres são vítimas preferenciais dos problemas de saúde causados pelo descaso às regras ambientais, como em relação aos estudos prévios da avaliação dos impactos ambientais na concessão da exploração daquelas áreas. São espaços nos quais ocorre a exploração sem conhecimento e respeito aos povos, ao mesmo tempo sem a adoção de tecnologias que permitam a conciliação entre exploração e sustentabilidade.
Também observamos a ausência de transparência na gestão daqueles patrimônios e na distribuição equitativa dos resultados das riquezas provenientes dessa exploração. Penso que essa situação acaba por pôr em causa a manutenção desses povos, porque, a partir do momento em que sentem que o seu esforço na conservação é ignorado face à apropriação indevida do espaço, acabam também por ceder às pressões das multinacionais que fazem uso de grandes quantias para que vendam suas terras. É uma situação que deixa não só as comunidades em condição de vulnerabilidade, como também os nossos próprios países, que têm seus patrimônios destruídos.
Então ocorre a precarização das condições de vida e, consequentemente, o deslocamento das comunidades para zonas onde, além de não terem ligação afetiva e espiritual, não possuem possibilidades de produção por não sentirem que são, de fato, donos da terra. Portanto o desafio de enfrentar essas questões todas deverá constituir exatamente o elemento crítico de reflexão da COP 30, que será também um espaço de discussão e de ocultação, sobretudo, da visão e da perspectiva desses povos, porque já vimos que a não existência deles significaria também a não existência de todos esses patrimônios de que estamos falando.
COP: cumprimento aquém das promessas
Penso que tem havido progressos no nível de posicionamento dos países africanos na COP, não só em termos de uma posição harmonizada do próprio continente, no que se refere à reparação climática e à justiça ambiental, mas também em termos daquilo que deve ser a transição energética do continente. Esses elementos têm contribuído para que haja uma frente comum, permitindo também, de algum modo, que possa servir de pressão para que, por exemplo, em relação aos compromissos assumidos, se possa concretizar aquilo que é a responsabilidade do Norte Global para com o continente africano.
Quando se fez a avaliação, por exemplo, em termos financeiros, daquilo que eram as necessidades do continente africano, viu-se que eram necessários cerca de 2,8 bilhões de dólares para responder, de uma forma adequada, às alterações climáticas no período de 10 anos. Mas a verdade é que, das promessas que foram feitas nas reuniões da COP, até agora, estamos muito aquém da possibilidade dessa cobertura. Das conferências de Sharm el Sheikh e de Baku, percebeu-se que havia uma questão central em assumir esses compromissos, principalmente sobre a questão da transição para a energia limpa, da redução da capacidade de produção de dióxido de carbono até a instalação desses sistemas de alerta precoce, por exemplo, no caso de resposta à agricultura e da resistência à seca. Portanto as necessidades do continente africano são muito específicas.
Não estamos falando das indústrias armamentistas que poluem bastante, nem estamos falando da produção de energia fóssil. Estamos falando de questões muito específicas relativas à instalação de um sistema que dá maior resiliência ao continente. Por isso, viu-se que havia uma necessidade de mobilização de recursos até 2030, que permitisse, efetivamente, o financiamento climático e que esse financiamento pudesse dar lugar também a uma capacidade não só de adaptação, mas também de transição energética aos nossos países.
O fundo climático deve orientar-se para a resposta aos casos mais severos, sobretudo nas comunidades costeiras do litoral que deverão passar para espaços de reassentamento, podendo também recuperar, por exemplo, as perdas que estão tendo. Agora, a verdade é que serão necessários, pelo menos, cerca de 187 a 509 bilhões de dólares por ano para salvaguardar pelo menos essa capacidade de adaptação. Enquanto se formos olhar para o nível de desemprego, sobretudo tomando como comparação os anos de 2022 e 2024, o que vimos é que apenas 28 bilhões foram efetivamente mobilizados. Ou seja, o nível de engajamento para o financiamento climático com os países em vias de desenvolvimento, em particular com o continente africano, é um desafio que ainda está por ser atingido. E, para isso, será necessário que os países ricos, mais poluentes, não só diminuam a sua capacidade de emissão, mas também assumam a responsabilidade da reparação e do apoio, não só a esse processo de transição energética, mas também à capacidade de adaptação e de criação da resiliência.
Do meu ponto de vista, isso não deveria ficar só no campo diplomático, mas também avançar para o Tribunal Internacional, para que sejam feitas as devidas condenações, como também o cumprimento daquelas medidas de reparação, com vista à concretização da transição necessária, sob pena de continuarmos assistindo a anúncios em torno de compromissos que nunca serão efetivamente assumidos.
