O ano de 2025 marca a 32ª edição do maior evento artístico da quadra nazarena, o Auto do Círio, que leva multidões para as ruas da Cidade Velha, o centro histórico de Belém do Pará. O Auto é um programa de extensão da UFPA, desenvolvido pela Escola de Teatro e Dança, reconhecido pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Arquitetônico/ Unesco como Patrimônio Imaterial do Brasil. Para o público, a noite da sexta-feira que antecede à grande romaria do Círio é reservada à participação nesse evento que nasceu, e assim se mantém, como uma grande homenagem dos artistas paraenses ao Círio de Nazaré.
Ao longo do tempo, o Auto do Círio configurou-se, no inconsciente coletivo, como uma tradição da época, aguardada não somente pelo público do Pará, como também pelos turistas vindos de diferentes partes do Brasil e do mundo. No entanto, embora não pareça, as tradições são inventadas, como afirmou o historiador inglês Eric Hobsbawm em um livro clássico dos estudos históricos e antropológicos – A invenção das tradições. Na origem de um evento cultural, por exemplo, quase sempre há um grupo de pessoas que se organiza e trabalha para que aquela ideia seja efetivamente posta em prática. Com o Auto do Círio, não foi diferente.
A história do Auto teve início em abril de 1993, quando o reitor da UFPA, na época, professor Marcos Ximenes Pontes, regressou de Pernambuco entusiasmado com a encenação teatral A Paixão de Cristo. Em uma reunião com a professora Zélia Amador de Deus, então vice-reitora, e com Margareth Refkalefsky, na ocasião coordenadora do Núcleo de Arte da UFPA (Nuar), unidade promotora de eventos culturais acadêmicos, localizada na Praça da República, o reitor perguntou se o Nuar poderia realizar um evento grandioso como ao que assistiu no Nordeste. Zélia e Margareth, que construíram expressivas trajetórias no teatro paraense, não deixaram passar em branco a ideia e, então, realizaram várias reuniões com a equipe do Nuar, com o objetivo de tornar real a proposta. Dessas reuniões, pensou-se em um evento com características de um auto teatral, que, por ser um auto, teria que ser composto por estações e Círio, imediatamente surgiu como uma referência por ser a maior festa religiosa do Brasil e uma das maiores do mundo.


A equipe do Nuar era pequena. Além da coordenadora, contava com Wânia Contente, Almira Alice Martins, Cintia Prado, Fernando Canto, Nilma Brasil e Walter Pinto, que era responsável pela assessoria de imprensa da unidade. Foi essa equipe que trabalhou para tornar realidade o primeiro Auto. Como a proposta era realizar um espetáculo de rua, Zélia e Margareth convidaram o diretor teatral Amir Haddad, então expoente do teatro de rua no Rio de Janeiro, que já havia trabalhado como professor da Escola de Teatro da UFPA por algum tempo e, há décadas, morava no Rio. O teatrólogo aceitou o convite e veio para Belém. Assim, o primeiro Auto do Círio foi delineado em seguidas reuniões com Amir Haddad.
“Daquelas conversas, surgiu a ideia de montarmos o Auto do Círio, um espetáculo de rua, aberto ao público, que estabeleceria uma ponte entre fé e cultura. Foi pensado como uma homenagem dos artistas à grande romaria do segundo domingo de outubro. Definimos que a concentração seria no Largo do Carmo, um local que tinha um importante apelo popular porque lá era montada a Feira do Miriti, tão logo os barcos vindos de Abaetetuba e Igarapé Miri atracavam no Porto do Sal trazendo os brinquedos da quadra nazarena. Dali sairia o cortejo pelas ruas da Cidade Velha. Decidimos realizar uma espécie de mobilização dos moradores da área, solicitando que estendessem toalhas nas janelas das casas no dia do espetáculo, já marcado para a sexta-feira antes do Círio. Eles nos atenderam”, lembra Margareth Refkalefsky.
Entre outras decisões tomadas pelos organizadores, definiu-se o enredo do cortejo, trazendo para o Auto mitos dos indígenas Kaiapó, daí o subtítulo ”Cenas da selva e da cidade”. Segundo Margareth, pensou-se num cortejo de 100 atores, formados em oficinas. “Não haveria um figurino próprio nem dispúnhamos de recursos financeiros para isso. Cada artista podia fazer o seu figurino ou trazer um outro de suas próprias peças, o que emprestaria ao espetáculo um caráter de memória do teatro paraense”.
A procura, porém, superou a expectativa, ao registrar a inscrição de 150 interessados. Assim, desde a primeira edição, o Auto do Círio assinalou o que seria uma marca ao longo do tempo: a enorme aceitação por parte do público.
Carnaval e devoção

A partir de 1996, o Auto do Círio passou para o âmbito da Escola de Teatro e Dança da UFPA, com direção do professor Miguel Santa Brígida. As mudanças realizadas na concepção do espetáculo podem ser sintetizadas na substituição do subtítulo “Cenas da selva e da cidade” por “Mito, história, fantasia e festa”. De acordo com Nicolle Manuelle Bittencourt, autora da monografia Auto do Círio: a organização da informação sobre um patrimônio construído pela Universidade Federal do Pará, “o diretor adicionou ao cortejo características carnavalescas inspiradas na devoção religiosa, vendo que o ponto alto do Círio é a junção do popular com o religioso, e o carnaval é uma das maiores festas de rua”.
A carnavalização do espetáculo atingiu o auge, segundo Nicolle Bittencourt, em 2001, quando contou com a participação de três escolas de samba, a Tradição Guamaense, o Bole Bole e o Império de Samba Quem São Eles. No ano seguinte, o Auto do Círio passou de 150 artistas para 500 participantes, incluindo as equipes técnica e de produção. Três carros alegóricos foram introduzidos no cortejo, para dar mais visibilidade às cenas, considerando o aumento de público a cada ano. O cortejo continuou crescendo e, em 2003, o Auto atraiu um público de cerca de três mil pessoas, segundo cálculos da organização.
Em 2008, o Auto do Círio levou para as ruas o tema “Por uma Belém de paz” e prestou homenagem ao diretor fundador Amir Haddad, que regressou a Belém para participar do evento.
Edição 2025

Reconhecido como Patrimônio Imaterial do Brasil pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Arquitetônico Nacional em 2024, o Auto do Círio, em suas três décadas de realização, vem contando com a presença de muitos artistas famosos nacionalmente, como Dira Paes, Fafá de Belém, Cacá de Carvalho, Gaby Amarantos, Dominguinhos do Estácio, Cássia Kiss, Padre Fábio de Melo, entre outros, provando o seu prestígio e a sua importância para o calendário cultural festivo do Círio de Nazaré.
Este ano, marcado para ocupar as ruas a partir das 19h do dia 10 de outubro, o cortejo traz o tema “Nossa Senhora de Nazaré, iluminai as lutas dos Povos da Amazônia” para estabelecer um diálogo entre os mistérios do terço mariano e a urgência das discussões sobre as mudanças climáticas. A saída será da Praça do Carmo e a apoteose nas proximidades do Palácio Sodré. Confira a programação completa.