“Por um Direito que Respeite, uma Justiça que Cumpra”. Foi em torno deste lema, baseado no título de um texto de José Saramago, que conversaram Pilar del Río, presidenta da Fundação José Saramago, e Beatriz Matos, antropóloga e professora da UFPA, companheira do indigenista Bruno Pereira, assassinado junto com o jornalista Dom Phillips no Vale do Javari, no Amazonas, em junho de 2022, caso repercutido internacionalmente. O encontro, que ocorreu na última sexta-feira, 19 de agosto, no Teatro Universitário Cláudio Barradas, com a presença de jornalistas, foi uma realização da Universidade Federal do Pará (UFPA) e está registrado no Canal UFPA Oficial no YouTube.
O reitor da UFPA, Emmanuel Zagury Tourinho, deu as boas-vindas e apresentou as convidadas. Para ele, a conversa tratou de temas da maior importância para quem vive e para quem se preocupa com o futuro da Amazônia. Na ocasião, ele reafirmou a solidariedade da UFPA às famílias, companheiros(as) de trabalho, de militância e amigos(as) de Bruno Pereira e Dom Phillips, conforme expressou em nota à época do caso, bem como a expectativa de que seja feita justiça em respeito à memória e ao legado de Bruno e Dom.
“A Universidade permanece muito impactada com tudo o que aconteceu, pela violência e brutalidade do crime e pelo que representa para a Amazônia. Nosso esforço é para contribuir, junto à sociedade, para que esse crime seja completamente apurado e que as pessoas sejam punidas; e, mais que isso, para que se quebre esse ciclo recorrente de agressões contra os povos da Amazônia e lideranças de trabalhadores rurais. Essa história dramática se repete na região com muita frequência. O Estado brasileiro tem a obrigação de garantir segurança à vida das pessoas que aqui vivem. A Universidade participa desse esforço da sociedade para que esse crime não caia no esquecimento e para que se possa garantir justiça e segurança na Amazônia”, afirmou Emmanuel Tourinho.
Diálogo – Pilar del Río iniciou a conversa com Beatriz Matos partindo de uma reflexão em que constatou que seres humanos são diferentes de outros seres vivos, porque têm razão e consciência, por isso não podem permanecer calados diante de injustiças como as que ocorreram com o indigenista e o jornalista recém-assassinados na Amazônia. Assim, o encontro, para ela, representou um “ato contra o silêncio, que tudo corrompe e tudo mata”. “Bruno é estímulo, exemplo e projeto. Espero que hoje consigamos combater a cegueira da razão, como disse tantas vezes José Saramago”, afirmou ela, que foi companheira do escritor português.
Beatriz Matos, companheira de vida e de militância de Bruno Pereira, com quem teve dois filhos, agora com 4 e 2 anos, é antropóloga e professora da UFPA e tem como área de pesquisa os povos indígenas da Amazônia. Como o indigenista, possui uma trajetória clara e comprometida com os povos originários, demonstrando respeito pelas causas de indígenas e de moradores de territórios amazônicos. A entrevistadora Pilar del Río definiu que a proteção à Amazônia é urgente e que, pelo convívio com Bruno e a experiência na área, Beatriz é pessoa autorizada para falar sobre o assassinato de Bruno e a causa indígena na região.
Como primeira pergunta à antropóloga, Pilar questionou como ela enfrentou a fase em que as duas vítimas estavam desaparecidas e como vivenciou a solidariedade, bem como o interesse nacional e internacional a respeito do caso. Além disso, se vivo, Bruno Pereira teria completado 43 anos nas proximidades do Dia dos Pais e Pilar perguntou à Beatriz: “como estás?”.
Beatriz Matos agradeceu ao reitor Emmanuel Tourinho e à Pilar pelo encontro como maneira de levar à frente o caso: “É necessário que não se esqueça injustiças”, de modo que manifestar-se contra a impunidade e silêncio é fundamental. Refletiu que foi justamente o fato de as pessoas estarem atentas ao que vinha acontecendo, que garantiu a realização das buscas pelas vítimas quando desaparecidas, avaliando que houve atraso por parte das autoridades, embora os indígenas estivessem atuantes na busca dos dois desde o primeiro momento. “Isso é importante não apenas para a solução do caso como para a dissolução de todas as cadeias que possam estar envolvidas (a exemplo do garimpo, desmatamento e pesca ilegais) e que crimes assim não se repitam”, afirmou.
Reservada, Beatriz não deu muitas entrevistas até então e o encontro com Pilar foi a primeira vez que aceitou falar publicamente sobre os acontecimentos que envolveu o assassinato de seu companheiro, por isso mostrou-se muito emocionada em vários momentos. Sobre seus sentimentos, revelou estar em uma fase de muita saudade e ambiguidade entre melhor e pior, aos poucos retomando a rotina e tentando adaptar-se à ausência de Bruno.
Missão – Segundo a antropóloga, a missão de Bruno e Dom naquele momento era, junto à União dos Povos do Vale do Javari (Univaja), estruturar equipes de vigilância para monitorar os territórios amazônicos e passar as informações encontradas que pudessem ameaçar a região para as autoridades competentes. “Bruno também era jornalista e quando começou a trabalhar com indígenas isolados já tinha noção da importância de publicizar o que vinha ocorrendo com as comunidades dentro da pauta ambiental, atuando na proteção dos territórios indígenas e seus entornos”, contou.
Pilar interpelou: “só isso já e uma revolução”. E Beatriz continuou: “Os indígenas já fazem isso no seu cotidiano, mas Bruno os estava orientando com relação ao uso de tecnologias”. Já Dom Phillips, segundo ela, estava junto porque escrevia sobre projetos que pudessem auxiliar a proteger a Amazônia. Ela revelou ainda ter se sentido muito comovida com a dedicação que os povos indígenas manifestaram a ambos quando perceberam e denunciaram os seus desaparecimentos na região do Vale do Javari e que, imediatamente após constatarem o sumiço dos dois, a Univaja a contatou para informá-la.
“Desde o primeiro momento que o atraso na chegada deles a Atalaia do Norte aconteceu, os indígenas já estavam envolvidos em buscas e nas investigações”, lembrou. “Houve grande mobilização, os indígenas desciam das comunidades, as próprias equipes de vigilância que estavam sendo treinadas por ele acamparam no campo para procurá-los”. Assim, foi também um indígena que, conforme relatou, identificou o lugar da entrada da lancha onde estavam no local em que foram encontrados seus pertences, porque percebeu uma diferença sutil na margem do rio.
Beatriz contou ainda que recebeu inúmeros vídeos de rituais e homenagens de diversos povos e de diferentes locais do Brasil e do mundo após o assassinato ter sido constatado. “Foi muito comovente, o que demonstra a força do trabalho dele e como estava conectado com a causa indígena”. Para ela, o crime foi um catalisador de tantos outros que ocorrem cotidianamente na Amazônia e que traz à tona as muitas injustiças que pairam sobre a região. “E isso não é porque se trata de um lugar perigoso, pois lá também vivem crianças e famílias, está dentro do território nacional, e não podemos naturalizar esse tipo de discurso”, observou. Para ela, o Vale do Javari, lugar que também vivenciou como amazônida e antropóloga, é um lugar de vida, de pessoas, de família: “se é preciso escolta para andar em um lugar como esse é porque ali tem um problema muito grave e que precisa ser solucionado pelas autoridades”.
Pilar del Río quis saber: “Por que é preciso defender a Amazônia? Quem és tu Amazônia? Que levas dentro de ti?”. Ao que Beatriz respondeu: “São muitas Amazônias. A que eu conheci foi essa da tríplice fronteira do Brasil, Peru e Colômbia. Esse lugar é absolutamente cosmopolita, é uma diversidade surpreendente, onde vivem refugiados, extrativistas, gringos, ayuaskeiros de várias denominações, evangélicos, movimentos messiânicos católicos, um lugar que transpira religiosidade e pluralidade, além de vários povos indígenas de várias partes desses três países, um entroncamento de diversas culturas, sem falar na força da floresta da alta Amazônia, onde as árvores são imensas, os rios enormes, as águas barrentas, é muita vida, muito peixe. Passando dias seguidos lá, cada dia se come um peixe diferente”.
“Quem poderia querer destruir um lugar desses?”, questionou Pilar. “Só quem não conhece, quem se refugia no preconceito ambiental, que vê a Amazônia como ‘meio do mato’, os povos originários como ‘atrasados’ ou os que são enfeitiçados pelo capitalismo. Como diz os Yanomami que estão lá segurando o céu (referência ao livro A queda do Céu, de Davi Kopenawa Yanomami e Bruce Albert), se o céu cair, o mundo acaba, o que é muito literal, porque se os povos indígenas acabam, que são quem promove a diversidade biológica e botânica na floresta, a Amazônia também acaba”, destacou Beatriz.
Pilar continuou: “Como antropóloga, o que seria do Brasil sem essa diversidade biológica, ética e natural: seria Brasil ou não haveria Brasil?”. Beatriz afirmou: “O Brasil que a gente quer é isso [a diversidade]. Para isso eu, Bruno e Dom trabalhamos. Somos militantes não apenas por altruísmo, mas também pelo nosso próprio bem. Sou patriota nesse sentido, de querer que meus filhos conheçam esse lugar que eu tive o privilégio de conhecer”. “Um país que não seja uma pedra no caminho de um profissional/estudioso como Bruno Pereira, que faz um levantamento e perde a vida assassinado de uma forma tão cruel”, complementou Pilar.
Compromisso – As duas encerraram a conversa lendo trechos de livros, dentre os quais Literatura & Compromisso, de José Saramago, com seleção, introdução e notas de Carlos Reis, que será lançado pela Editora da UFPA e pela Fundação Saramago durante o Colóquio Internacional “José Saramago: palavra, pensamento, ação”, que ocorre na UFPA, com a participação de Pilar del Río, de 22 a 24 de agosto de 2022. O trecho lido fala sobre o respeito que deve existir entre povos culturalmente distintos e como a sociedade pode, de forma conjunta, encontrar possibilidades para o crescimento do país sem extingui-los. Para conferir a programação completa do Colóquio, acesse o hotsite do evento.
Texto: Jessica Souza – Ascom UFPA
Fotos: Alexandre de Moraes – Ascom UFPA e Cláudio Ferreira, a serviço da UFPA