A trajetória de Flávia Silva dos Santos é marcada pelo coletivo. Integrante de movimentos sociais de defesa da causa quilombola desde muito cedo, a jovem pesquisadora acaba de defender sua dissertação e tornar-se a primeira quilombola mestre, da turma precursora de mestrado direcionada exclusivamente a indígenas e quilombolas, formada pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (PPGD/UFPA).
Flávia defendeu a dissertação intitulada Autonomia e proteção territorial quilombola: análise de conflitos trabalhistas e a integridade espacial das comunidades quilombolas no estado do Pará / Brasil, sendo aprovada com distinção e louvor e com indicação para publicação do trabalho considerado referência pela banca, ao tratar de uma causa inédita no Brasil.
“A minha pesquisa se refere a dois casos que, segundo levantamento, só aconteceram na nossa região, em Abaetetuba: o leilão de parte de dois territórios quilombolas. As comunidades tiveram parte de seus bens oferecida em processos trabalhistas, e esses bens foram leiloados e arrematados, e foi nesse momento que houve a ação da assessoria jurídica quilombola, que conseguiu reverter a situação. Os dois processos, se seguissem sem atuação do jurídico quilombola, abririam precedentes muito delicados para as comunidades quilombolas não apenas no estado do Pará, mas também em todo o Brasil”, detalha Flávia, que, ao lado de outros dois advogados quilombolas, integra a equipe jurídica da Malungu, Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos no Pará, responsável pela ação vitoriosa que virou tema de pesquisa.
Flávia pertence à Comunidade Genipaúba, localizada na região das várzeas, ilha do município de Abaetetuba, e chegou à UFPA, em 2015, por meio do Processo Seletivo Especial para Indígenas e Quilombolas. Tornou-se advogada e, hoje, primeira mestre titulada residente na comunidade. “Direito nunca foi um sonho, o Direito nasceu de uma necessidade. Precisávamos ter alguém nosso formado dentro da área, que entendesse as nossas especificidades e atuasse em defesa das nossas causas defendendo a nossa luta como povo quilombola. Foi o que fiz”, orgulha-se.
Na dissertação, Flávia considerou os riscos à autonomia espacial das Comunidades Quilombolas Médio Itacuruçá, localizada na zona rural do município de Abaetetuba, e da Comunidade Quilombola São Manoel, localizada na zona rural do município de Moju, que tiveram parte de seus imóveis arrematada em leilão, após suas terras coletivas terem sido apresentadas como garantia em processos trabalhistas. O estudo configurou-se, predominantemente, como um estudo de caso com abordagem qualitativa, pesquisa bibliográfica, documental, legislativa e jurisprudencial.
“Observamos a legitimidade da autonomia das comunidades no uso e manejo de seu território, assegurado tanto na legislação internacional quanto na Carta Constitucional e nas legislações infraconstitucionais, o que permitiu concluir que, dentro dos casos analisados, foi fundamental as comunidades terem concretizado o direito à titulação, a mobilização das comunidades para assegurar o seu chão, através de seus regramentos e costumes internos, e o despertar para a necessidade de seguir o debate sobre a proteção territorial quilombola que corriqueiramente é ameaçada”, detalha Flávia. O trabalho contou com a orientação do professor José Heder Benatti.
Além do título recém-conquistado, a pesquisadora comemora ainda a recente aprovação no processo seletivo especial do mesmo programa, que disponibilizou duas vagas para pessoas etnicamente e racialmente diferenciadas. “Minha expectativa é seguir alinhando os saberes tradicionais ao conhecimento acadêmico, dentro da pesquisa que almeja a defesa das nossas garantias legais e consuetudinárias aos nossos territórios quilombolas”, traduz a jovem mestre.
Nova turma especial – Flávia é a primeira das 12 pessoas étnica e racialmente diferenciadas que integraram a segunda turma especial ofertada pelo PPGD/UFPA. A iniciativa surgiu do Projeto “Diversidade étnica no ensino em direitos humanos”, coordenado pelas professoras Cristina Terezo e Jane Beltrão, por meio da Clínica de Direitos Humanos da Amazônia (CDHA), com financiamento da Fundação Ford e da Clua, que compreende residência para advogados(as) indígenas e quilombolas, mestrado e, agora, doutorado em Direito (PPGD/UFPA) para indígenas e quilombolas e cátedra de professor visitante indígena oferecida pela UFPA.
Um dos maiores programas de formação de indígenas e quilombolas na área do Direito, área de concentração em Direitos Humanos, em âmbito nacional, a experiência tem se consolidado na UFPA. Recentemente, 08 novos indígenas/quilombolas foram selecionados para mestrado e 02 para doutorado (incluindo Flávia). As aulas terão início em julho, em modalidade intervalar para atender às demandas comunitárias.
“Trata-se de uma experiência muito positiva que tem sido elogiada pelo corpo discente e docente do programa. Trata-se de pessoas que têm muita vivência e que se veem em constante ameaça. É muito importante que a gente escute e forme essas pessoas para auxiliar na luta pela reivindicação e aprovação de seus direitos que, até hoje, muitas vezes, são negados”, salienta a professora do programa e presidente da Comissão do Processo Seletivo Especial, Jane Beltrão.
Texto: Edmê Gomes – Assessoria de Comunicação Institucional da UFPA
Fotos: Arquivo pessoal