Entre fé e cultura: a materialidade do Círio de Nazaré

Quais elementos compõem uma das maiores procissões religiosas do mundo? A corda, o cartaz, o almoço do Círio e, claro, a imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré. Muito além de símbolos religiosos, esses objetos formam uma rede de significados que conecta pessoas, territórios e memórias, um exemplo de como a cultura material ajuda a comunicar identidades e experiências coletivas na Amazônia.

A cultura material estuda a relação dos objetos na vida das pessoas. O mundo é experienciado por meio das materialidades e, no contexto do Círio de Nazaré, realizado na segunda semana de outubro, em Belém, elas assumem um papel central na vivência religiosa/cultural, tornando-se uma via de compreensão da paisagem devocional estabelecida durante as procissões.

“A cultura material, como área de estudo, nos mostra os diferentes objetos que fazem parte da nossa vida e que são constitutivos da nossa experiência”, explica Gabriel da Mota, autor da dissertação Círio de Nazaré: experiências de sentidos e sociabilidades por meio da cultura material, defendida em 2022, no Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia (Ppgcom/UFPA).

Durante a pandemia de covid-19, quando os eventos presenciais foram suspensos, essa dimensão material do Círio ganhou ainda mais força. Imagens da Santa nas casas, cartazes nas janelas e o tradicional almoço do segundo domingo de outubro tornaram-se formas de manter viva a experiência coletiva e o sentimento de pertencimento – uma nova forma de presença, mesmo na ausência das ruas cheias.

Símbolos de pertencimento

Entre os rituais mais simbólicos, o almoço do Círio se destaca como um momento de convivência, memória e troca. As lembranças evocadas durante o preparo e o consumo frequentemente remetem a familiares, especialmente mães e avós que preparavam os pratos, religando os sujeitos a entes queridos já falecidos.

“Perdi a minha avó em 2020 e, no Círio, a gente almoçou um pouco de maniçoba que ela tinha deixado congelada. Então, ela se fez presente na nossa mesa por meio daquilo que ela sempre fazia pra gente, o almoço do Círio. Isto foi muito marcante para mim: perceber as ausências e o enfrentamento dessas ausências que as pessoas fizeram”, relembra o pesquisador.

Os objetos e os gestos do almoço – a casa, o lugar à mesa, o modo de preparo – tornam-se, assim, pontes entre gerações e veículos da memória coletiva. A corda também é um dos principais símbolos da festividade. Antes restrita ao Círio de Belém, ela se expandiu para outras procissões no Pará. Inicialmente usada para puxar a berlinda, hoje já não é necessária para essa função, mas permanece devido à sua força simbólica. Representa a conexão dos participantes com Nossa Senhora e a responsabilidade coletiva pelo transporte da imagem. É um “cordão umbilical” simbólico que conecta os devotos.

“A corda tem esse poder identitário, coletivo, por várias razões. Por gerar o encantamento em quem tá de fora e antecipar essa experiência com o divino, quer dizer, não é só quando você vê a Santa que você se emociona e se conecta com essa força. A própria corda já é um símbolo disso, é um anúncio”, detalha.

O cartaz é outro objeto central: sua distribuição permite que as pessoas levem um pedaço da festa para casa, compartilhem e utilizem o material para anunciar o Círio. A personalização do cartaz em camisas, toalhas e outros objetos tornou-se um fenômeno incontrolável que movimenta a economia local. Além disso, ele carrega um forte valor afetivo por conter a imagem da Santa, possibilitando que as pessoas se sintam presentes no Círio.

“Para mim, esse valor afetivo de ter a imagem da Santa (que é o objeto mais importante) no cartaz tem um peso muito significativo para quem é devoto dela”, afirma o estudioso.

Celebração ecumênica e cultural

Desde 2022, com o retorno completo do formato presencial, o Círio tem reafirmado o seu papel como expressão cultural da Amazônia. As ruas cheias, os almoços, os cheiros e os sons compõem uma experiência sensorial que vai além da fé, é uma celebração de pertencimento coletivo. E todos esses fatores atuam para que a festividade atraia a participação de pessoas com diferentes crenças, tanto nos rituais organizados pela Igreja quanto nas manifestações da sociedade civil. 

O que se observa é a expressão de aspectos da cultura local que revelam as marcas da identidade paraense, com uma programação diversificada, que vai além das procissões e celebrações eclesiásticas, incluindo espetáculos culturais, exposições temáticas, comercialização de produtos artesanais e o preparo de pratos típicos.

Nesse contexto, baseada em uma perspectiva relacional da comunicação, a dissertação diferencia “interação” e “relação” para compreender as experiências do Círio: a interação se refere aos contatos imediatos, enquanto a relação envolve laços contínuos e afetivos. E, no Círio, os objetos estão presentes em ambas e podem, inclusive, ajudar a transformar interações em relações, materializando vínculos e memórias.

“Naquele contexto de pandemia, eu poderia abrir mão das interações eventualmente estabelecidas no meio da multidão, mas eu não tenho como viver o Círio absolutamente sozinho. É impossível. E é muito curioso isto, pensar que o Círio pode até ser vivido sem a imagem nas ruas, sem a procissão, mas não sem as pessoas da tua casa, do teu núcleo mais próximo. Ele é feito dessa relação com os teus, e Nossa Senhora vai se fazer presente sempre em diversas materialidades: no cartaz, na imagem que tu colocas em cima da tua mesa e na tua memória”, explica Gabriel da Mota.

Sobre a pesquisa: A dissertação Círio de Nazaré: experiências de sentidos e sociabilidades por meio da cultura material foi defendida por Gabriel da Mota Ferreira, em 2022, no Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCOM/ILC), da Universidade Federal do Pará (UFPA), sob orientação da professora Manuela do Corral Vieira.

TEXTO: Evelyn Ludovina - Assessoria de Comunicação Institucional da UFPA

FOTOS: Angel Duarte - Comunicalente

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