Estudantes de Licenciatura levam ensino lúdico às unidades socioeducativas em Ananindeua

Como ensinar Química para adolescentes e jovens em contextos de privação de liberdade? Foi com essa pergunta que o grupo de estagiárias de um Projeto de Extensão e Ensino do curso de Licenciatura em Química da Universidade Federal do Pará (UFPA), Campus Ananindeua, iniciou sua jornada em três unidades de atendimento socioeducativo localizadas no município: Cesef (unidade feminina) e Uases II e III (unidades masculinas). Muito além das paredes da escola tradicional, o desafio foi construir pontes entre o conhecimento científico e a realidade de adolescentes e jovens em privação de liberdade, nesses espaços em que também são desenvolvidos processos formais de escolarização.

A proposta de intervenção surgiu de uma articulação entre a Faculdade de Química, por meio dos  Projetos de Ensino (Capes/Pibid) e o de Extensão (Proex) coordenados pela professora Janes Kened (UFPA), com a Seduc/PA e as unidades da Fasepa, em Ananindeua, visando promover uma prática de ensino inovadora e socialmente comprometida, na qual a presença da ciência pode significar também o fortalecimento da cidadania. O projeto contou com a atuação das estudantes da UFPA Adriana Miranda, Ana Campos, Katy Carvalho e Rayane, com apoio e supervisão da professora Rosana Passos e da diretora da escola, com a oferta da modalidade de ensino, Regina Guimarães, ambas da Seduc/PA.

“Ao assumir o compromisso de  realizar práticas de ensino diversificadas nas condições e especificidades das unidades socioeducativas por intermédio de jogos, experimentos e adaptação lúdica de materiais, conectamos, de forma interdisciplinar, os conteúdos específicos de Química, estimulando aprendizagens e ofertando uma experiência educacional positiva e inspiradora por meio desta ciência. Também precisamos lidar com os aspectos afetivos e sociais desse contexto por que os jovens estão passando. Isso transcende nossa formação acadêmica e, muitas vezes, nossa estrutura psicológica, mas seguimos neste compromisso social de nossa universidade através da formação de profissionais preparados para atuação múltipla no campo educacional para além dos muros da escola regular sob os quais estamos mais habituados. É o ensino de Química transformando vidas, dando esperança de dias melhores”, destaca a professora Janes Kened. 

Como forma de reconhecimento do papel transformador, o projeto recebeu o Prêmio Paulo Freire 2025, do Enalic, em reconhecimento ao mérito das ações educacionais desenvolvidas no âmbito do Programa de Bolsa de Iniciação à Docência – Pibid.

Da universidade para a socioeducação – Ao entrarem nesses espaços, as(os) estudantes da UFPA perceberam que ensinar Química deveria ultrapassar os limites dos livros didáticos  e das aulas expositivas, devendo desenvolver uma escuta ativa com empatia e uma prática docente lúdica, principalmente, considerando que os jovens atendidos estão sujeitos às medidas socioeducativas visando à ressocialização. Assim, as estagiárias desenvolvem atividades dinâmicas que integram: jogos, filmes, livretos didático científicos e experimentos simples, todos cuidadosamente contextualizados com o cotidiano dos adolescentes e com as especificidades de segurança dos espaços.

Uma das experiências interdisciplinares e lúdicas é a aplicação do jogo autoral elaborado no âmbito do Pibid, “Caminho dos Orixás: Conquista Elemental”, uma proposta pedagógica que associa os elementos químicos às divindades das religiões afro-brasileiras. Nesse jogo de tabuleiro, os participantes avançam por territórios do mapa do Brasil ao responderem a perguntas interdisciplinares sobre conteúdos de Química – como reações de combustão e composição da água, por exemplo -, elaboradas considerando características dos orixás Xangô (Fogo), Oxum (Água), Oxalá (Ar) e Oxóssi(Terra). O jogo promove o engajamento com a química e a valorização da ancestralidade e da cultura afrodescendente, tema essencial para o desenvolvimento de uma educação antirracista e plural, potencializando também a formação docente nesta perspectiva.

Outras propostas didáticas de destaque foram uma aula prática de Fermentação Alcoólica, quando os adolescentes foram desafiados a montar reações experimentais e observar, na prática, os efeitos da fermentação e da liberação de gás carbônico, e a leitura do livreto Marie Curie: Mãe da Radioatividade, durante as aulas de Tabela Periódica, para apresentar a biografia de Curie, enfatizando suas descobertas do rádio e do polônio, elementos radioativos marcantes tanto pelos riscos que oferecem à saúde quanto pelas inúmeras aplicações positivas na medicina e indústria.

“Foi muito gratificante levar a Química para os alunos de forma lúdica e divertida. Deu pra ver a alegria estampada nos rostos dos alunos e das alunas ao realizarem a prática de fermentação alcoólica. Além de eles se divertirem, eles, de fato, aprenderam sobre o tema abordado, o que encheu meu peito de orgulho. Com certeza, foi e está sendo uma das minhas melhores experiências como uma futura professora de Química”, aponta Ana Campos, uma das estagiárias responsáveis pela condução da prática. 

Imagem reproduz a capa do livreto utilizado no projeto. A capa destaca o título: MARIE CURIE: A MÃE DA RADIOATIVIDADE. Há o desenho de uma mulher com tubo de ensaio na mão.

A utilização dos materiais com os (as) socioeducandos(as) contribuiu para dinamizar o processo de aprendizagem, aproximando-os do conteúdo de maneira mais contextualizada e acessível. Durante a leitura, surgiram dúvidas e curiosidades em relação, por exemplo, ao termo “pechblenda”, o mineral que Marie Curie estudou e que foi essencial para identificação dos elementos radioativos. Esse movimento espontâneo de questionamento evidenciou o quanto a proposta foi capaz de estimular o pensamento crítico e a ampliação do vocabulário científico. 

“Poder utilizar um dos livretos que produzimos ao longo desses anos de curso foi uma experiência muito gratificante. O envolvimento deles, a colaboração na leitura e, principalmente, o espanto ao se depararem com um cordel científico, muitos já tinham ouvido falar de cordel, mas nunca tinham lido um com esse enfoque químico, marcou bastante para mim. Além disso, fiquei especialmente feliz quando levantaram questões importantes, como a valorização da mulher no meio científico, que também é um tema abordado no livreto. Quando eles trouxeram essa pauta, senti um orgulho enorme, porque percebi que estávamos, de fato, seguindo pelo caminho certo”, comenta a estagiária Katy Carvalho.

As atividades desenvolvidas vão além da mera transmissão de conteúdo. Elas promovem reflexões sobre questões sociais relevantes de forma interdisciplinar e/ou contextualizada, como a presença e a valorização das mulheres na ciência, as questões religiosas e culturais, e a diversificação do ensino com jogos, experimentos e livretos, além de demonstrarem a potência de estratégias pedagógicas que integram múltiplas linguagens no processo de ensino- aprendizagem.

Experiência de uma escuta sensível – Além das práticas lúdicas e experimentais, o estágio também se caracteriza por momentos de escuta sensível, trocas afetivas e reflexões. Um dos adolescentes atendidos, em fala anônima, compartilhou: “Nunca pensei que ia gostar de Química. Aqui a gente aprende de um jeito diferente, mais legal e divertido”. Pensamento acompanhado por outro jovem, que pontuou, com brilho nos olhos: “Gostei tanto das aulas que agora também quero ser professor de Química”. 

Essas manifestações dos socioeducandos mostram o impacto que a educação pode ter quando ela é mediada com escuta, cuidado e intencionalidade pedagógica. Para a professora Rosana Passos, que atua na unidade, foi possível perceber mudanças significativas no comportamento e na autoestima dos jovens ao longo das atividades. O contato com a Universidade e com metodologias inovadoras fortaleceu os vínculos com o conhecimento, despertando nos adolescentes o interesse pela ciência e pela aprendizagem.

“A experiência vivida pelas estagiárias é de suma importância, considerando que favorece, ainda em sua formação acadêmica, um olhar diferenciado a essa clientela. Presentes na sala de aula, mesmo que em outros moldes, o direito ao ensino das componentes curriculares obrigatórias é mantido e executado”, destaca a diretora da unidade escolar, Regina Guimarães. 

O projeto segue como inspiração, tendo gerado a produção de novos materiais didáticos com enfoque social e a proposta de extensão do estágio para futuras turmas. “O alcance que temos através da educação de qualidade em espaços que, muitas vezes, são esquecidos pelas iniciativas do poder público, é importante para a atuação e a formação docente inovadoras e socialmente engajadas, pois é reflexo das condições reais do mundo atual. É inegável que precisamos ter coragem para viver e enfrentar os desafios de nossa existência. Alguns jovens têm seu caminho atravessado por outras referências e a educação precisa ser ressignificada na trajetória deles. Por meio da Química, promovemos momentos de leveza, aprendizagem e encantamento com o aprender. Temos esperança de dias melhores e da mudança das vidas desses socioeducandos”, ressalta a professora Janes Kened.

TEXTO: Divulgação do Projeto, com edição da Ascom/UFPA

FOTOS: Divulgação do Projeto

Relação com os ODS da ONU:

ODS 3 - Saúde e Bem-EstarODS 4 - Educação de Qualidade

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