Música e mistérios no “Encomendação das Almas”

Vestidos de branco, com a cabeça coberta de panos igualmente brancos, seis ou sete rezadores se reúnem à meia-noite da quarta-feira de trevas, no cruzeiro do cemitério, do qual partem para realizar orações pelas almas dos mortos. No cortejo, o grupo se dirige às casas que solicitam rezas, as quais sinalizam com velas acesas nas calçadas. É na Sexta-Feira Santa que a comitiva retorna ao cemitério para as últimas rezas, depois de haver passado pela igreja.

O ritual fúnebre acontece há mais de um século no município de Oriximiná, mesorregião do Baixo Tocantins. Suas raízes se confundem com a própria colonização na região, fortemente marcada pela presença de missões religiosas. No próximo dia 15 de abril, a igreja de Santo Alexandre abre as portas para o espetáculo “Réquiem Encomendação das Almas”, obra musical para coro e orquestra do paraense Luiz Pardal, inspirada no misterioso rito amazônico. 

Participam do concerto o madrigal e o coro comunitário da Escola de Música da Universidade Federal do Pará (Emufpa), assim como a Cameratamazônica. São cerca de 40 pessoas envolvidas, entre professores, alunos e ex-alunos da instituição, além de participantes de projetos de extensão. A regência estará sob a batuta dos maestros Adamilson Abreu e Miguel Campos Neto, que se revezam durante o programa.

Celson Gomes, professor e atual diretor da Emufpa, ressalta a importância da pesquisa na elaboração da composição musical, bem como o envolvimento da comunidade escolar em torno desta rica produção artística. “Houve uma atividade de pesquisa que foi desenvolvida no início dos anos 2000, pelo Instituto de Artes do Pará. Com base nas coletas de campo, o Pardal construiu essa obra em 4 movimentos. Quando trazemos isso pra um concerto daqui, com uma orquestra de alunos atuais, egressos, com o madrigal e o coro comunitário, nós estamos envolvendo os alunos nesse clima de um fazer amazônico”, diz o professor.

O espetáculo exigiu uma rotina rigorosa de ensaios, com a separação necessária de coro e orquestra. O professor Adamilson Abreu ficou responsável pelo grupo vocal, formado por homens e mulheres. No entanto o trabalho do regente iniciou antes dos ensaios, já que o compositor realizou uma adaptação na obra, originalmente escrita somente para vozes masculinas. Adamilson foi consultado por Luiz Pardal durante toda a etapa de modificação. Na opinião do professor, o maior desafio foi desenvolver um aprendizado por meio da memória, com os participantes do coro comunitário, pois eles ainda não leem partitura. “A leitura no coro amador remonta um pouco os princípios da transmissão oral, mas também, como parte do projeto de extensão, eu aproveito pra fazer educação musical. Embora eles tenham como referência eu cantando e tocando as partes pra eles ouvirem antes de ler, eles estão sempre seguindo a partitura”, afirma o professor, que irá reger coro e orquestra em “Encomendação das Almas”. 

A preparação da parte orquestral ficou a cargo de Miguel Campos Neto, professor da Emufpa, maestro titular da Orquestra Sinfônica Altino Pimenta (OSAP) e da Orquestra Sinfônica do Theatro da Paz (OSTP). No dia do concerto, Miguel estará à frente do grupo durante a primeira parte do programa, regendo as obras Ave Maria, composição sacra de Luiz Pardal que traz a participação da soprano Dione Colares, e Ao Santo Sepulcro, sinfonia em dois movimentos de Antonio Vivaldi.

O concerto marca também o início da programação oficial do 52˚ Enarte, evento realizado pela Escola de Música da UFPA que leva apresentações musicais a diversos palcos da cidade durante o ano inteiro. A semana principal, que concentra a maioria dos espetáculos, acontecerá de 23 a 30 de junho deste ano.

Idosa reza. Velas acesas ao fundo.

Musicar um “latim-caboclo” – “Bendita Aié” é o título da primeira reza, destacando uma característica importante do ritual, a presença de um sotaque regional numa manifestação originada no catolicismo popular. Ao receber a encomenda da obra pela Secult-PA, Luiz Pardal assistiu a vídeos, ouviu os cantos e achou muito interessante aquela combinação de elementos da cultura local com uma religião milenar. O compositor decidiu preservar as melodias originais dos cantos, que são entoadas pelo coro. O trato orquestral fornece uma roupagem especial às vozes. “Eu não quis mexer. Peguei células musicais, o contorno melódico, intercalei com partes instrumentais e partes cantadas”, afirma Pardal. Foi na harmonia baseada nos ditos modos gregos, utilizados na Baixa Idade Média como referência de teorização e organização do sistema musical da liturgia católica, que o compositor encontrou a sonoridade que mais se destaca na composição. Ao final, Pardal batizou a criação de “Réquiem”, um gênero musical criado para cerimônias fúnebres na música de tradição europeia.

Uma alteração estrutural no ritual levou Luiz Pardal a reformular a estratégia em relação ao coro: “Na época, esse movimento religioso era só cantado por homens, hoje em dia, já fiquei sabendo que existem mulheres, é por isso que estamos fazendo, agora, com coro misto”. Essa é uma das novidades que os ouvintes poderão conferir no concerto do dia 15 de abril, que será a segunda apresentação da obra. Aqueles que não conhecem o rito da “Encomendação das Almas” terão a chance de ouvir um aspecto central dele, que são as gravações com as próprias vozes dos rezadores. Elas irão abrir cada um dos 4 movimentos da obra musical. Sem dúvida, será uma oportunidade única de presenciar um grande espetáculo que coloca em evidência uma singular manifestação religiosa, viva há mais de um século na Amazônia.

Serviço

Concerto “Réquiem Encomendação das Almas” (Luiz Pardal)

Madrigal, Coro Comunitário e Camerata da Emufpa

Quando – 15/4, às 19h

Local – Igreja de Santo Alexandre: Praça Frei Caetano Brandão, s/n.

Entrada franca

TEXTO: Isac Almeida – ASCOM/EMUFPA

ARTES: André Alcântara

FOTOS: Caio Aud

Relação com os ODS da ONU:

ODS 4 - Educação de QualidadeODS 16 - Paz, Justiça e Instituições Eficazes

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