O novo número do Boletim Ciências Humanas do Museu Paraense Emílio Goeldi chega como um gesto de escuta em um país historicamente habituado a silenciar. No centro da publicação, o Dossiê “Direitos ‘sequestrados’ aos povos tradicionais: possibilidades de compreensão” desloca o foco do olhar: em vez de retratar povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos apenas como vítimas de processos de exclusão, revela-os como protagonistas ativos na reconstrução de direitos, memórias e futuros.
A publicação reúne 15 contribuições de intelectuais indígenas, quilombolas e pesquisadores de diversas regiões do país, com reflexões críticas sobre memória, identidade, justiça social e sustentabilidade. Entre os organizadores, os pesquisadores da UFPA José Heder Benatti, Uwira Xakriabá, Almires Martins Machado e Jane Felipe Beltrão, que atuam diretamente na produção científica e na articulação de debates sobre os direitos dos povos tradicionais na Amazônia.
Mais do que uma coletânea de artigos acadêmicos, o volume se constrói como um território de encontro entre saberes ancestrais e reflexão crítica contemporânea. Intelectuais indígenas e quilombolas de diversas regiões do Brasil assumem a palavra para discutir os mecanismos históricos que subtraíram direitos coletivos e, sobretudo, as formas de resistência que brotam do cotidiano, da língua, da educação e da espiritualidade. É uma ciência que não fala sobre os povos tradicionais, mas com eles e, muitas vezes, a partir deles.
A imagem de capa sintetiza essa proposta. Uma criança indígena sorri enquanto se banha em um rio, acompanhada por uma mulher adulta. Fotografada pela antropóloga Luiza Mastop, a cena ultrapassa o encanto da superfície: representa a continuidade da vida, a transmissão silenciosa de saberes e a persistência de um modo de existir que insiste em sobreviver ao que o dossiê denomina “sequestro de direitos”. É não apenas uma fotografia, mas também uma metáfora visual de futuro.
A imagem captada por uma das autoras do dossiê, a antropóloga Luiza Mastop, tem significados múltiplos. Um deles, como se verá no dossiê, é: contra o ‘sequestro’ de seus direitos, seguem os povos tradicionais produzindo novos conhecimentos a serem desfrutados em territórios do futuro.
Obra – De início, pode-se ler sobre como os conhecimentos tradicionais proporcionam uma “agricultura indígena” sustentável, sem obedecer a concepções eurocentradas. Trata-se do artigo “Territórios indígenas, conhecimentos tradicionais e sustentabilidade nas Amazônias”, escrito pelos pesquisadores Jane Felipe Beltrão, Gutemberg Armando Diniz Guerra e Tallyta Suenny Araújo da Silva. A educação escolar diferenciada como fator decisivo para a valorização e perpetuação desse conhecimento tradicional é abordada em artigo da pesquisadora Rosain Kamury: “Educação Escolar Indígena e Educação Escolar Quilombola: movimentos de luta pelo direito à escola”.
Nesse mesmo contexto, os meandros da educação e da identidade do povo Aikewara são expostos no artigo “Construindo memórias com Arihera: educação e identidade Aikewara em foco”, assinado por Luiza de Nazaré Mastop-Lima e Arihera Suruí.
Em outra face da temática do dossiê da revista científica, a língua de um povo mostra-se como um elemento estratégico para a resistência dos integrantes de um povo diante de ameaças sucessivas. Isso pode ser conferido no artigo dos pesquisadores Lucivaldo Costa e Bekroti Xikrín: “Escrita em língua materna e fortalecimento etnolinguístico”.
Saúde mental – A saúde mental e o bem-viver encontram nas concepções indígenas significados profundos e capazes de gerar novas perspectivas sobre esses temas tão presentes no debate das sociedades contemporâneas. Essa temática é acessada pelo leitor no estudo feito com riqueza de detalhes pelos intelectuais indígenas Idjarrury Sompré e Eliane Rodrigues Putira Sacuena, intitulado “Bem-viver psicoanimista como alternativa ao conceito de saúde mental: uma proposta a partir de cosmologias indígenas brasileiras”, com base na atuação profissional em coletivos indígenas.
O artigo “A cartilha de letramento racial como forma de enfrentamento ao racismo”, de autoria dos pesquisadores Andrew Rêgo Benjó e Celyne da Fonseca Soares, traz uma proposta de posicionamento concreto frente ao racismo praticado cotidianamente contra os povos originários brasileiros, em particular, o povo negro. Nesse documento, é abordada a aplicação prática do conhecimento acadêmico no enfrentamento de situações de segregação e desrespeito aos povos tradicionais no dia a dia.
Dimensões da luta – Na seção “Memória”, o leitor confere artigos como “Paiakan, líder Kayapó: assassinado pelo Estado brasileiro”, de Uwira Xakriabá, acerca da liderança kayapó no Pará. Bep-kororoti, conhecido mundialmente como Paulinho Paiakan, tem atuação marcante pelos direitos dos povos indígenas no município de Altamira, no Pará, em dois momentos de luta contra o Estado.
Já em “Memória cotidiana do quilombo Rio Genipaúba”, o pesquisador Amilton Bitencourt Azevedo apresenta as dificuldades de se construir um relato histórico sobre uma comunidade negra. Isso por conta do racismo que atinge esse núcleo populacional na área de várzea do município de Abaetetuba, no Pará.
A experiência milenar de ser cidadãos ribeirinhos diante da falta de apoio governamental para manifestações culturais que fortalecem a identidade de uma comunidade na cidade de Ponta de Pedras, no Arquipélago do Marajó, também é tema de leitura no Dossiê do MPEG. Trata-se do artigo “Espaço cultural Casa do Poeta: saraus, performances e a palavra como transformação” (Conceição, 2025), de autoria do pesquisador Marcos Samuel da Costa Conceição. Desse relato memorial, surge a pergunta: “Como ribeirinhas/os, não temos direitos culturais?”.
Vivências – Já na seção Debate do Dossiê, Almires Martins Machado, em coautoria com Divina Lopes Guarani e Yvy Mirim (nome civil: Priscila Guarani), traz o artigo “Kunangue Tenondetá: indígenas mulheres Guarani em movimento”, com foco nas ações dessas duas lideranças indígenas mulheres para sustentar as possibilidades do bem-viver guarani, ou seja, cuidar dos saberes do povo, inclusive por meio da língua materna, na coexistência com pessoas não guaranis, sem perder a identidade indígena.
E o dossiê ainda traz um Ensaio Fotográfico de autoria de José Ubiratan Sompré, intitulado “Tônkyre, a guerreira que se forjou na luta”. Esse trabalho versa sobre Tônkyre, cujo nome civil é Kátia Silene Valdenilson, a primeira cacica de seu povo, os Akrãtikatêjê, que mantém a luta na defesa dos direitos indígenas, como herdeira de seu pai, o grande líder Hõpryre Ronoré Jopikti Payaré. Ele jamais desistiu de lutar contra o deslocamento forçado quando da construção da Hidrelétrica de Tucuruí.
Ao final do dossiê, três resenhas. Uma delas é “Descolonizar metodologias é necessário, alerta Linda Smith, pesquisadora maori”, de Rita Carneiro. A autora explana os princípios da obra Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas, lançada por Linda Smith, em 1999, como referência para compreensão do universo dos povos tradicionais no Brasil. A segunda é “Fatumbi: o oráculo do olhar”, de Daniely Rosário, que mostra a essência antropológica das religiões afro-descendentes no Brasil, com base em trabalhos históricos de Alex Baradel e Pierre Edouard Léopold Verger (1902-1996). E, ainda, “Povos indígenas e audiovisual: memórias e resistências no Xingu”, de Camille Castelo Branco, sobre o trabalho organizado por Takumã Kuikuro e Guilherme Freitas. Referenciada por autoridades indígenas e não indígenas, como Ailton Krenak, Carlos Fausto, Naine Terena e Watatakalu Yawalapiti, a obra versa sobre a importância dos registros audiovisuais para a concretização de uma vida digna aos povos indígenas.