Segundo a cosmologia Guarani, a Terra foi criada das caminhadas de Nhanderu Vussu, o Deus Criador. Para cuidar e conservar a Mãe Terra, foi criado o Guarani – que tem a permissão de usufruir os recursos naturais, porém precisa respeitar os seus limites. Neste sentido, a Terra é uma pessoa, é viva e possui personalidade jurídica. O seu estatuto, no entanto, não é definido pelo Código Civil, uma vez que se trata de uma propriedade coletiva que não tem preço, mas valor. Isto significa que a Terra não é posse particular, e sim constitucional. “Dependendo da natureza das ações em relação à Mãe Terra, há o risco de profanação do sagrado”, explica o professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) Almires Martins Machado, pertencente à etnia Guarani-Terena.
Esta compreensão do mundo choca-se com a tese jurídica do marco temporal, segundo a qual os povos indígenas têm direito apenas às terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. De acordo com a Câmara dos Deputados, a tese surgiu em 2009, em parecer da Advocacia-Geral da União sobre a demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima.
Os principais embates entre as duas argumentações jurídicas é tema da Conferência “Terra indígena versus marco temporal, segundo a ótica Guarani”, que será apresentada em 8 de julho de 2024 pelo professor Almires Machado durante a 76ª Reunião Anual (RA) da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A sessão, que será mediada pelo professor André de Avila Ramos, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), faz parte da SBPC Afro e Indígena. Maior evento científico da América Latina, a SBPC ocorre de 7 a 13 de julho, no Campus Guamá da UFPA, em Belém.
Fronteira – “Nossa disputa é, na verdade, com a Frente Parlamentar da Agricultura, com o agronegócio, em sentido lato”, afirma Machado. Representando quase 13% do território nacional, a maior parte das terras indígenas regularizadas localiza-se na Região Norte (Amazônia), é agricultável e/ou rica em minérios. “A Amazônia é a nova frente de expansão do agronegócio. Por isso as terras indígenas geram incômodos, já que estão fora do mercado imobiliário. Além disso, fogem do que é previsto no Direito Civil como propriedade particular, porque a questão indígena é uma posse constitucional, não uma posse do Direito Civil.”
Segundo o professor da UFPA, até a Constituição Federal de 1988, os indígenas não tinham capacidade postulatória, portanto não poderiam sequer defender suas terras, conforme argumenta a tese do marco temporal. O embate jurídico atinge não apenas o povo Guarani, mas também todas as comunidades tradicionais (terras indígenas e quilombolas) do Brasil. “Estamos falando de vidas, milhares de vidas. A depender de como vai ser aplicado ou interpretado esse marco temporal, pode haver um novo genocídio ou pode estar se formando um novo grupo de pessoas sem terras – agora, indígenas”, comenta Machado. “A contradição é esta: sem terras na sua própria terra ou no que foi a terra um dia criada e dada a um Guarani Kaiowá pelo seu Deus Criador.”
Sobre – Parte da programação da Reunião Anual da SBPC, o Selo SBPC Afro e Indígena contempla questões relacionadas à cultura e à trajetória afro e/ou indígena. Além das atividades científicas tradicionais – conferências, mesas- -redondas, minicursos e painéis –, estão previstas exposições na Maloca (antiga Capela Universitária) e em uma tenda de 400 m², em frente ao prédio da Reitoria da UFPA. Com o tema “Ciência para um futuro sustentável e inclusivo: por um novo contrato social com a natureza”, a 76ª RA da SBPC é uma realização da SBPC e da UFPA.